sexta-feira, 29 de abril de 2011

(Ir)realidade

A chuva cai forte lá fora e faz com que os reflexos da televisão sobre o vidro fosco da janela tornem-se um tanto quanto poéticos. Dentro da sala, as paredes frias assistem novamente ao espetáculo insano que é o desejo do homem pelo homem, nesse caso, da mulher pela mulher. Nem é noite ainda, mas já está escuro. Dentro do espetáculo eu pareço personagem, porém, ao lado das paredes, faço-me espectadora. A irrealidade presente na presente realidade faz com que aquela belíssima peça de teatro não deixe um instante de parecer puramente ficcional, ou então, por meus pensamentos estarem como que flutuando pelo aconchego do velho cobertor puído ao invés de onde deveriam, fruto do uso abusivo de alguns quilos de drogas alucinógenas. Porém, no meio disso tudo, não parece haver certo ou errado, pelo contrário, esse tipo de julgamento nem ao menos considera tomar espaço nesse meio ilusório. Espaço o tem os toques, assim, de mão com mão, que espantam o frio de tanto que o coração insiste em bater mais rápido como se tudo aquilo fosse uma primeira vez e, sendo, estes, pequenos filetes mágicos, abrem portas para o mais e mais e mais, infinitamente. Assim eles se sucedem sempre magnificamente únicos, inusitados e minimamente planejados. Assim, eles abafam qualquer característica racional ou sensata que já não fora abafada pela chuva, pelo cobertor ou pelo filme que passa na televisão e eu finjo assistir. A intensidade é como um mergulho gradativo.Aumenta-se a intensidade, mais perto chego de alcançar as belas profundezas marítimas, e, enquanto não as alcanço, vou incessantemente submergindo. Quanto mais mergulho, menos me dou conta de que estou mergulhando, causa da mudança de pressão sobre meu cérebro juvenil e despreparado. Mas é bonito e azul o caminho, então prossigo. Algumas sensações provindas do toque e da intensidade me lembram gangorras vermelhas que sobem e descem, outras, luzes amarelas e azuis de um show banhado a muito álcool barato e caixas de som desreguladas. Parece infinito o mergulho, e é exatamente o que eu quero que ele seja, mas não penso isso, só sinto. Num dado momento, porém, tudo para. O ser humano afasta seu corpo do corpo do outro ser humano e acontece um daqueles repentes que fazem arranhar na garganta um eu-te-amo que não pode mais ser dito por regra geral de acordo mútuo. Os olhos olham nos olhos dos olhos e acham que querem chorar mas não podem, pois essa proibição também está contida nas letrinhas miúdas desse mesmo acordo. Então os corpos se abraçam e amam-se assim, mesmo diante do proibido que está no falar, diante dos curiosos espectadores e dos seres que habitam eles mesmos e discordam desse amor. Afinal, a irracionalidade, quando diz respeito ao amor, pode ser o único caminho racional em uma quinta-feira onde a chuva cai forte lá fora e faz com que os reflexos da televisão sobre o vidro da janela tornem-se um tanto quanto poéticos.

3 comentários:

  1. Lu, que texto maravilhoso. Sério, lindo de verdade. Parabéns. <3

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  2. nem sei o que dizer, talvez fique assim o não dito como o melhor de todos os elogios, enquanto eu admiro seu talento de escrever.

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