terça-feira, 17 de agosto de 2010

Flores de plástico

Você não sabe tocar, mas senta-se à frente de um piano e bate nas teclas do jeito que bem entende, suave ou rispidamente - não importa. À sua volta todos te observam. Rostos taciturnos, olhares críticos e alguns sorrisos gozadores. Não dê atenção a eles, feche os olhos devagar e escape da realidade que dia após dia você mesmo se submete a viver. Toque novamente. Agora veja, se você sentir – sentir na sua forma mais pura de ser - já é música. Certas vezes os homens destroem a beleza do abstrato ao tentar concretizá-lo. Eu destrui a beleza das palavras ao tentar disciplinar esse ser indisciplinável que sou. Sinto tanto e, tantas vezes, busco colocar no papel. Nada me satisfaz. Quero contar-lhe toda a verdade que há dentro de mim, porém, zombo de mim mesma quando penso em fazê-lo. Acordo todos os dias e pergunto-me se sou louca em sonhar o mesmo sonho, noite após noite, noite após noite. Tenho medo de que o que digo ter sido real seja tão irreal quanto meus desejos mais impossíveis e insanos. Sei que você nega o que passou e foge disso toda vez que olha nos meus olhos e sorri. Não é mais o mesmo sorriso. Mas basta perguntar ao pôr-do-sol e ele lhe dirá: você sentiu, não negue mais. As árvores te denunciam, o ar te denuncia e até mesmo as nuvens cinzentas te denunciam. Eu não te denuncio, mas brinco com meus pensamentos, sonhando acordada com aquelas lembranças. Depois paro. Respiro fundo e observo as paredes brancas do meu quarto. Quando canso de observá-las, deixo de ser quem sou e as lembranças se vão. Mais cedo ou mais tarde sei que retornam. Preciso contar-lhes: há um lugar bem longe daqui em que as florestas são azuis e os mares vermelhos. Nesse lugar há um velho que cultiva flores de plástico. Um dia, eu e o velho jogávamos conversa fora, quando, sem motivo algum, ele me contou o seguinte: há uma flor em meu jardim de concreto, a mais bela de todas; suas pétalas brancas brincam de se pintarem com todas as cores do arco-íris quando o sol se põe. E acrescentou que não existe um só ser vivo no mundo capaz de ver além dele mesmo. Paro. Seu rosto vermelho chora lágrimas de emoção. As andorinhas que viajam de um lado para o outro me disseram que o velho é cego. Pouco me importa, eu gosto de acreditar na história da flor. Quantas vezes também não fui cega e te transformei em perfeição, ser inacreditavelmente imperfeito?

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A lima da pérsia

Acontece que um dia, sem fome, sem vontade, sem nada, me surgiu a ideia de comer uma lima da pérsia. Assim sendo, abri a segunda gaveta da cozinha em busca de uma faca que fosse afiada o suficiente para que a tarefa de descascar uma lima se tornasse, no mínimo, tolerável. Quando enfim encontrei a de meu agrado fui, em movimentos circulares, descascando devagar sua pele lisinha. Meus dedos apertavam firmemente seu corpinho rechonchudo, enquanto as fatias da casca seca e amarelada que a protegia iam caindo desgraçadamente sobre a toalha. Enfim, só restou-se aquela camada branca da fruta, aquela pele macia que tão graciosamente a envolve, última defesa da polpa que descansa em ingênua segurança. Pobre lima da pérsia! Eu perdida em tolas divagações humanas, mal me dava conta de que desvendava seu segredo mais íntimo. Meus dedos faziam seu corpo rolar de um lado para o outro, de um lado para o outro. Subitamente, porém, eu parava, arrancando sua pele branca com as minhas unhas afiadas. Meus pensamentos voavam longe, bem longe dali. De repente me cansei, peguei a faca e parti a pobre fruta no meio. Ah se ela pudesse gritar! Provavelmente agora eu estaria ensurdecida, tamanho seriam suas súplicas e lamentos. Arranquei uma a uma suas sementinhas miúdas e meti um pedaço na boca. Foi então que meus pensamentos voltaram-se para ela. Olhei para a lima com atenção, nunca antes havia reparado como era bonita. Toda feita de fiapinhos recheados de água doce com perfume de flor. Passei a brincar de desfazer aqueles gominhos. E pensava: soltem-se dos seus irmãos! Os segundos pareciam horas enquanto eu me entretinha na minha inconsciente e sádica diversão. Então, comi mais um pedaço. Aí fui comendo; mais um, mais um e ainda outro. Quando me dei conta já havia comido a lima todinha. Eu tinha comido uma vida. Uma vida toda. Meu corpo inteiro começou a tremer, meu estômago dava voltas e voltas. Era vida destruindo vida. Senti uma dor aguda, súbita vontade de pôr tudo para fora. Aquela foi a primeira vez que senti nojo de viver.