terça-feira, 27 de outubro de 2009

válvula de escape

Depois da caminhada mais surpreendentemente cômica para um dia tão sofrido, larguei minhas coisas no sofá e voltei para a agradável companhia de meu caro amigo - o portão verde.
Sentei-me no chão de piso vermelho com mais conforto do que se estivesse sentado na mais macia poltrona de veludo. Os pensamentos rondaram minha mente e, por incrível que o pareça, diferente de todos os outros anteriores, estes eram plenamente agradáveis.
No mesmo instante, Cocada, minha beagle gorducha, sentou-se ao meu lado. Obedientemente esperou algum agrado de minha parte, e o fiz, afinal, ela merecia até muito mais que isso, pois ela que havia sido o motivo de minhas escandalosas, porém sinceras, gargalhadas no meio da rua. O motivo? Não vou contar-lhe, pois você se assustará com minha tamanha insensibilidade. Bom, penso que em alguns momentos é necessário simplesmente jogar o sofrimento para o alto e me divertir com ele, assim, pelo menos nos momentos ruins, sinto prazer em viver.
O vento gelado salpicado com finíssimas gotas de água bateu em meu rosto e isto conseguiu me alegrar ainda mais. Sozinha, me diverti com as luzes e sombras na parede e, apesar de agora ter me lembrado de você por causa disso, não o fiz. Ri ao ver a mulher do labrador tentando ficar em pé, de tão forte e desengonçado que era o animal a puxando. Cocada latiu em meus ouvidos. Por que seus latidos têm de ser tão desafinados e esganiçados? Bom, eu devo ser assim como ela quando canto, então não posso reclamar.
Um velho passou segurando um guarda-chuva e deus duas rápidas olhadelas para as figuras interessantemente felizes que se encontravam atrás do portão. Não há como estar feliz em um dia tão frio, nublado e escuro, ainda mais se você estiver desagasalhado, ouvindo terríveis latidos, sentado no chão duro e ter acabado de terminar um relacionamento (não que ele soubesse desse detalhe). Eu estava; e sorri para ele. Isso o fez caminhar mais depressa. Então um jovem passou e olhou para mim, mas seu olhar não me agradou nenhum pouco. Curiosamente, gosto mais dos velhinhos do que de certos jovens com seus hormônios à flor da pele. Obviamente que não estou generalizando.
Minha alegria momentânea de viver era tão grande que me parecia quase concreta, palpável. Estendi minha mão para tentar alcançá-la, mas ela era mais rápida que o vento e, junto dele, voou entre meus dedos. Apoiei, então, minha mão em meu braço esquerdo e o acariciei. Pude sentir prazer com meu próprio carinho. Naquele momento, pensei que poderia escrever algo sobre isso, ou melhor, eu necessitava disso. Em minha cabeça, as palavras giravam. Brinquei com elas. Acho que não existe nada mais lindo, temeroso e auto-suficiente do que as palavras. Utilizo delas justamente para me expressar sobre elas. E quando elas passam a gostar de você, tornam-se dóceis e ainda mais belas. Penso que as palavras eram as melhores amigas de Clarice Lispector. Respirei fundo àquela hora. Me senti perfeitamente plena de tudo. Respirei o vento com suas geladas gotículas de água, respirei meus pensamentos, minha alegria e as palavras. Uma delas prevalecia as outras - macia. Algodão doce, eu me lembrei. Ou talvez, nuvens. E todas as outras se tornaram macias como ela.
Subitamente, um vira lata misto de creme e caramelo surgiu ao meu lado, atrás do portão. Preparei meus ouvidos para os latidos da minha cachorrinha. Ao invés disso, ela ganiu e começou a abanar o rabo. Os dois tiveram um rápido e único momento. Cheiraram-se os focinhos um do outro. Ele foi embora, então ela latiu. "Calma - eu disse para ela- ele vai voltar." Nesse momento ri da ironia de minhas palavras. Você surgiu de novo em minha mente e meu pequeno momento agradável do dia se foi. Tudo ficou escuro de repente. O frio alegre tornou-se o habitual frio triste. Novamente, o sofrimento surgiu e, decidida, eu voltei para casa. Restaram-se as lágrimas e um único pensamento - Impossível ficar melhor sem você.

domingo, 18 de outubro de 2009

Um completo exagero

Meus sentimentos já não são mais sentimentos – são moscas. Nojentas, repulsivas, repugnantes, nauseantes, enjoativas, nauseabundas, horripilantes, desagradáveis, indecorosas, feias, indecentes, asquerosas, arrepiantes, horrendas, indignas, estorvas e inconvenientes moscas peludas. Dão voltas e voltas e assim voam dentro de mim. E não se cansam. Giram porque são confusas! Nunca estabelecem-se em um só lugar. Pior! Preferem pousar nos mais lúgubres cantos e só depois vir zumbir em meus ouvidos cansados. Então suplico por um pouco de paz. Mas as malditas nem pensam em prestar atenção no que digo. Suas estranhas patinhas peludas pousam sobre onde antes você tinha beijado e só o que peço aos Céus é paciência para suportar a penosa dor. Dor muito bem merecida pois em troca de minhas errantes ideias (embora não compartilhadas) recebi sua cruel indiferença. Mas penso que talvez eu não o mereça mesmo. Talvez meu destino seja ser deixada de lado. Às moscas.

sábado, 17 de outubro de 2009

O Cafeeiro

No terraço de uma pequena casa de esquina na zona norte de São Paulo, posso avistar um cafeeiro de quase quatro metros de altura. Pequeninos grãos vermelhos escondem-se entre grandes folhas verde-acinzentadas. Seus galhos ultrapassam os limites do portão cinzento e na calçada suja jazem brancas flores perfumadas. Um homem velho vestindo um suéter azul marinho caminha sobre aquelas flores e atravessa o portão. Então foge de minha visão, pois o cafeeiro o protege de meus olhos curiosos. Quase anoitecendo, alguém derruba um grande pote de tinta laranja-avermelhada sobre o céu azul anil. Ouço um tilintar de chaves e passos curtos e lentos guiam o velho homem para longe da segurança de seu amigo cafeeiro. Olha em sua volta, mas acho que não consegue me ver. Agora posso observá-lo mais claramente. Me pergunto se em algum lugar de seu subconsciente ele sabe que estou tão próximo dele e que seus pensamentos gritam dentro de mim. Seu rosto aparenta os rastros de um passado que não quer esquecer. Ele está cansado. Digo mais uma vez à ele que a garota já sabe muito bem se virar sozinha. Ela não precisa mais de você, eu sussurro lá dentro de seu pensamento-sentimento. Hoje ele resolve me escutar, suspira e se volta para o portão. Não há motivos fortes o suficiente para que saia de casa àquela hora, afinal, já está idoso demais para enfrentar o perigo da noite. Novamente, fico só com o cafeeiro. Passam-se carros, ônibus, motos e adolescentes agitados com seus hormônios à flor da pele. Passam-se mulheres apressadas carregando sacolas de plástico abarrotadas de compras. Passa uma menininha desajeitada guiando um enorme Golden Retriever creme. Nenhum deles percebe que estou ali. A menininha distraída ouvindo música por pouco não esbarra em mim. O cão parece perceber e vira-se para me olhar. Sorrio para ele. No conforto de sua casa, o velho escuta no noticiário que no dia seguinte mais uma frente fria vinda do sul chegará à cidade. Ele resmunga sozinho e, cabisbaixo, percebe que não importa o que ouvisse em relação ao tempo estaria resmungando. Seus pensamentos voltam-se para a garota e eu, numa tentativa frustrada, tento tirá-la de sua mente. “Eu sei.. sei que ela já tem mais de vinte anos mas ainda acho que preciso protegê-la, acho que vou telefoná-la. Mas.. pensando bem, da última vez que fiz isso ela replicou nervosa que estava muito bem obrigada e que eu não deveria mais me preocupar. Ai que menina mais ingrata à tudo que já fiz para ela, não quer nem mais saber como anda seu velho avô!” Seus pensamentos berram dentro de mim. Depois tudo se acalma. Sinto um gosto amargo bem no fundinho da alma, então deduzo que, novamente, ele teria tomado um comprimido para dormir. Dentro de mim só resta-se um silêncio sepulcral. Meus olhos fecham-se. Então, na calçada coberta de flores sob os galhos do cafeeiro, eu adormeço. Subitamente o velho acorda, seu moletom puído de dormir está molhado. Teria ele chorado durante a noite? Não sabia. Subitamente o forte perfume das flores de café faz meu nariz coçar e eu também acordo. Sinto a antiga sensação de que tinha acabado de fechar os olhos e, aqui estou eu, acordado novamente. O silêncio agora realmente reina. As luzes de toda a vizinhança já estão apagadas. Com certeza já é madrugada. Dois gatos reclamões miam sentados no muro da vizinha. Um deles possui um só olho. Ele me vê e seu olhar penetra bem no fundo da minha alma. Sinto uma dor muito forte, quando me deparo com a imagem da menininha pequena, balançando-se sob os galhos de uma mangueira. Apesar da escuridão, o céu novamente clareia-se dentro de mim. Surgem flores amarelas, brancas, azuis, vermelhas. O sol sorri para um moço que empurra a menininha no balanço. O perfume das flores de café torna-se mais doce, bolo de chocolate, penso comigo mesmo. Uma moça surge sorrindo e convida o moço e a menina para o chá da tarde. Em sua cama sob os lençóis, o velho relembra do sonho. Se pergunta se foi mesmo um sonho ou só um pensamento. Acha engraçado ter sonhado com uma lembrança. Uma hora se passa e ele não consegue voltar a dormir. Os primeiros raios de sol surgem sob a vidraça da janela, então decide que já deve ser hora de coar seu café. Sentado sozinho na mesa da cozinha em companhia das paredes frias, ele pensa sobre o que vai fazer em seu dia. Não muita coisa diferente do que a usual, pensa. Visitar a mulher no hospital, podar os galhos do pé de café, talvez mais tarde telefonar para a neta.. Interessante como há uns anos atrás pensava em sair do país, ter uma aventura, viver sozinho e livre de responsabilidades e hoje, após três anos vivendo só, acha que não seria mais capaz.. Eu observo as nuvens sendo carregadas pelo vento voando cada vez mais depressa, como o tempo. Sinto pena do velho. Pena por saber que o cafeeiro e eu somos suas únicas companhias e por saber também que a vida não guarda muito mais para ele. A tão amada juventude já passou e ele sabe que hoje só está colhendo os últimos frutos do que plantou há muito tempo. Os dias passam cada vez mais depressa, todos muito semelhantes, criando a rotina. E cada vez que um acaba o final anuncia que está cada vez mais perto. Mastigando devagar o último pedacinho do pão com manteiga, o velho suspira com as tristes constatações que acabo de apresentá-lo. Lava a louça, troca o moletom pelo suéter azul marinho, calça seus sapatos, diz bom dia ao cafeeiro e, esquecendo-se do que acabo de lhe dizer, começa mais um dia que, cedo, já vai acabar.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

desabafo

Certas vezes, meus olhos involuntariamente entregam o jogo e enchem-se de lágrimas. São nesses momentos em que eu rio da minha própria incapacidade de esconder meus sentimentos, por menores que eles sejam. Interessante uma pessoa ser sádica consigo mesma.