sábado, 17 de outubro de 2009

O Cafeeiro

No terraço de uma pequena casa de esquina na zona norte de São Paulo, posso avistar um cafeeiro de quase quatro metros de altura. Pequeninos grãos vermelhos escondem-se entre grandes folhas verde-acinzentadas. Seus galhos ultrapassam os limites do portão cinzento e na calçada suja jazem brancas flores perfumadas. Um homem velho vestindo um suéter azul marinho caminha sobre aquelas flores e atravessa o portão. Então foge de minha visão, pois o cafeeiro o protege de meus olhos curiosos. Quase anoitecendo, alguém derruba um grande pote de tinta laranja-avermelhada sobre o céu azul anil. Ouço um tilintar de chaves e passos curtos e lentos guiam o velho homem para longe da segurança de seu amigo cafeeiro. Olha em sua volta, mas acho que não consegue me ver. Agora posso observá-lo mais claramente. Me pergunto se em algum lugar de seu subconsciente ele sabe que estou tão próximo dele e que seus pensamentos gritam dentro de mim. Seu rosto aparenta os rastros de um passado que não quer esquecer. Ele está cansado. Digo mais uma vez à ele que a garota já sabe muito bem se virar sozinha. Ela não precisa mais de você, eu sussurro lá dentro de seu pensamento-sentimento. Hoje ele resolve me escutar, suspira e se volta para o portão. Não há motivos fortes o suficiente para que saia de casa àquela hora, afinal, já está idoso demais para enfrentar o perigo da noite. Novamente, fico só com o cafeeiro. Passam-se carros, ônibus, motos e adolescentes agitados com seus hormônios à flor da pele. Passam-se mulheres apressadas carregando sacolas de plástico abarrotadas de compras. Passa uma menininha desajeitada guiando um enorme Golden Retriever creme. Nenhum deles percebe que estou ali. A menininha distraída ouvindo música por pouco não esbarra em mim. O cão parece perceber e vira-se para me olhar. Sorrio para ele. No conforto de sua casa, o velho escuta no noticiário que no dia seguinte mais uma frente fria vinda do sul chegará à cidade. Ele resmunga sozinho e, cabisbaixo, percebe que não importa o que ouvisse em relação ao tempo estaria resmungando. Seus pensamentos voltam-se para a garota e eu, numa tentativa frustrada, tento tirá-la de sua mente. “Eu sei.. sei que ela já tem mais de vinte anos mas ainda acho que preciso protegê-la, acho que vou telefoná-la. Mas.. pensando bem, da última vez que fiz isso ela replicou nervosa que estava muito bem obrigada e que eu não deveria mais me preocupar. Ai que menina mais ingrata à tudo que já fiz para ela, não quer nem mais saber como anda seu velho avô!” Seus pensamentos berram dentro de mim. Depois tudo se acalma. Sinto um gosto amargo bem no fundinho da alma, então deduzo que, novamente, ele teria tomado um comprimido para dormir. Dentro de mim só resta-se um silêncio sepulcral. Meus olhos fecham-se. Então, na calçada coberta de flores sob os galhos do cafeeiro, eu adormeço. Subitamente o velho acorda, seu moletom puído de dormir está molhado. Teria ele chorado durante a noite? Não sabia. Subitamente o forte perfume das flores de café faz meu nariz coçar e eu também acordo. Sinto a antiga sensação de que tinha acabado de fechar os olhos e, aqui estou eu, acordado novamente. O silêncio agora realmente reina. As luzes de toda a vizinhança já estão apagadas. Com certeza já é madrugada. Dois gatos reclamões miam sentados no muro da vizinha. Um deles possui um só olho. Ele me vê e seu olhar penetra bem no fundo da minha alma. Sinto uma dor muito forte, quando me deparo com a imagem da menininha pequena, balançando-se sob os galhos de uma mangueira. Apesar da escuridão, o céu novamente clareia-se dentro de mim. Surgem flores amarelas, brancas, azuis, vermelhas. O sol sorri para um moço que empurra a menininha no balanço. O perfume das flores de café torna-se mais doce, bolo de chocolate, penso comigo mesmo. Uma moça surge sorrindo e convida o moço e a menina para o chá da tarde. Em sua cama sob os lençóis, o velho relembra do sonho. Se pergunta se foi mesmo um sonho ou só um pensamento. Acha engraçado ter sonhado com uma lembrança. Uma hora se passa e ele não consegue voltar a dormir. Os primeiros raios de sol surgem sob a vidraça da janela, então decide que já deve ser hora de coar seu café. Sentado sozinho na mesa da cozinha em companhia das paredes frias, ele pensa sobre o que vai fazer em seu dia. Não muita coisa diferente do que a usual, pensa. Visitar a mulher no hospital, podar os galhos do pé de café, talvez mais tarde telefonar para a neta.. Interessante como há uns anos atrás pensava em sair do país, ter uma aventura, viver sozinho e livre de responsabilidades e hoje, após três anos vivendo só, acha que não seria mais capaz.. Eu observo as nuvens sendo carregadas pelo vento voando cada vez mais depressa, como o tempo. Sinto pena do velho. Pena por saber que o cafeeiro e eu somos suas únicas companhias e por saber também que a vida não guarda muito mais para ele. A tão amada juventude já passou e ele sabe que hoje só está colhendo os últimos frutos do que plantou há muito tempo. Os dias passam cada vez mais depressa, todos muito semelhantes, criando a rotina. E cada vez que um acaba o final anuncia que está cada vez mais perto. Mastigando devagar o último pedacinho do pão com manteiga, o velho suspira com as tristes constatações que acabo de apresentá-lo. Lava a louça, troca o moletom pelo suéter azul marinho, calça seus sapatos, diz bom dia ao cafeeiro e, esquecendo-se do que acabo de lhe dizer, começa mais um dia que, cedo, já vai acabar.

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