terça-feira, 22 de maio de 2012

O homem que sentou ao meu lado no metrô fede a alcool e urina. Ele balbucia palavras e palavras inentendíveis e me enlouquece porque é louco e eu também sou. Depois, passa o dia como passa o pernilongo pela orelha. Escuro, então. Nunca esperei tanto por alguém porque tenho medo de minha falta de paciência ser motivo de mágoa. E acabou sendo mesmo. Só que pra mim. Volto sozinha, o que me resta é estar sempre sozinha no meio desse tudo. Penso isso, penso também que meu poema só por ser ritmado não basta; ele não diz tudo que eu tenho pra dizer sobre a solidão. Há mais coisas, como a sacola plástica do "Frango Assado" nas mãos daquele outro homem. Ele está feliz e segura um franguinho morto. Franguinho morto, franguinho morto, franguinho morto. A mulher dos cabelo amareladamente tingidos também é uma dessas coisas da solidão, ela diz a mulher de unhas compridas e de sapato de bico sobre o chocolate que a vadia do seu departamento deu praquele outro outro homem que ela chamou de amor. Daí ela gritou e comprou um chocolate maior. A mulher de unhas compridas quase bateu palmas pela digna atitude. Eu fiquei chorando mesmo, porque só sei fazer chorar. É choro pra tudo que ninguém mais me aguenta. Também hoje, depois do homem que fedia a alcool e urina, vi um bebê pretinho segurando os dedos de uma velha bem branquinha, e foi tão bonito que até chorei. Penso nas crianças sempre, porque são elas que me fazem sobre-viver. As crianças devem se lembrar do franguinho morto quando ninguém mais se lembra. Tenho medo, também, de um dia esquecer.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Acima de nós a escuridão nos engoliria. Dentro, o silêncio. Em sua completude não nos levaria a angústia dos que não tem voz, nem à distância ou a incerteza, mas a mútua compreensão dos que não necessitam de palavras. Seríamos apenas o que sabemos ser: dois corpos nus estirados num plano que agarra e não permite o voo. Nossas mãos se encontrariam, não porque quiséssemos, mas porque queriam. E meus olhos não se cegariam no abismo de seus olhos, nem minha boca cederia aos apelos de seus beijos, pois não teríamos face. Seus dedos percorreriam leve e incessantemente cada instante de minha nudez. E tremendo, sem voz, sem medo, você me arrancaria suspiros que viriam do desvendar de meus segredos. Então eu me permitiria navegar sobre seu corpo sem receio da beleza que, cega, antes me ferira. Nesse abandono e reconhecimento ambos seríamos náufragos e mergulharíamos no infinito do desconhecido. Transpassaríamos a fronteira de nossos seres até que se esvaíssem todas as inverdades: o eu se reduziria a tu e o tu a eu. Nossos corpos então dançariam até ascenderem-se aos céus e, quase no limite do mundo, o hálito do véu negro nos revelaria o sublime. Depois, viria a exaustão. Plainaríamos até o alcance do terreno numa quase morte e, no aterrissar, o corpo deixaria de ser essência. Eu me levantaria e cobriria minha nudez e voltando a vida recuperaria meu rosto. Meus olhos me trariam lágrimas, minha boca, sangue. Eu voltaria ao meu ser e se faria a porta que abriria, o ar que eu respiraria, o sol que me queimaria e outros seres que, na solidão, não me acolheriam. Você seria pó. O instante perdido, eterno, esquecido.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Muitas pessoas, pombos, chão e calor, tudo numa rua só. Aí me encontro, no meio dessa confusão com cheiro de gente e pipoca, e aí está ela também, ela que desconheço de intimidade mas conheço de nome: Maria Thereza. E passa devagar, dentro de um vestido verde florido, não sei se querendo ou não estar ali. Os outros é que não querem que ela esteja. Sei disso pois quem me conta é essa plaquinha branca dependurada no meio das flores do vestido, onde se lê: Maria Thereza – doente auditiva e cega. E leio: Maria Thereza - subproduto social. Maria Thereza - se pudesse ser descartada, há tempos já teria sido. Maria Thereza - produtora e consumidora inativa. Maria Thereza – esperando a morte que não chega e se não traz prejuízo para o governo, traz prejuízo para a família. Não sei o que o crachá grita mais, se é distância ou dó. Aqui tudo tem cheiro de pipoca e gente que espera ônibus e ônibus que não espera gente e tem a Maria Thereza, que todo mundo finge que não tem. O que eu queria mesmo era escrever por essa senhorinha, mas como poderia se o mundo que vê não é o mundo que vejo? Posso estar traindo todo seu viver se disser que enxerga escuridão se, em verdade, vê cores. Então escrevo para ela: Maria Thereza do vestido florido e dos passos pequenos, se este fosse meu mundo você não andaria com esse crachá e nem estaria aqui. Eu te levaria para um lugar bonito, junto dos meus sabiás e da grama com cheiro de chuva. Você, que sem me conhecer nem saber que existo, abre meus olhos que vivem sempre tão fechados. Depois vai embora, tão depressa, e eu fico assim a ver num instante o que os livros não contam, as pessoas não dizem e que o mundo tanto lutou para esconder de mim, de nós e dele mesmo.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

frio

O frio está tão bom - eu digo - o céu parece maior quando se está nublado, não é?

Eu caminho, passos largos, talvez querendo adiantar o final, não sei bem. O cabisbaixo não se atreve a rir e o risonho nem pensa em sair de sua humilde posição um tanto quanto inocente que se disfarça de bom senso. (Quanto falta de bom senso havia naquele pedaço de mundo que fiz no instante em que decidi seguir ao lado de vocês! Quanto distanciamento infinito disfarçado de aproximação!) Os segundos correm e eu digo para os dois lados de mim calarem-se.

Não tomem partido, eu sussurro. Não ajam impulsivamente. Não submetam-se a surtos artísticos.

Converse sobre o tempo.

(Estava escrito num livro que li que a única coisa que podemos partilhar com as pessoas é a preferência pelo mesmo tipo de clima, então, é o que faço.)

O frio está tão bom - eu digo - o céu parece maior quando se está nublado, não é?

Não parece. Eu é que quero voar e respirar esse ar rarefeito até que se ardam meus pulmões e eu caia no chão, estática, defunta. Pois, prossigo. Sendo fria com o calor e por demais acalorada com o que me vêm frio.

Então, sem querer, uma parte de mim vai embora. Estou descendo escadas rolantes e, logo em seguida, me encontro em frente a uma doceria onde há um bolo tão macio. Mas tudo que tenho em mãos é um chocolate barato, então, engulo o chocolate mesmo. Engulo-o de qualquer maneira. Não importa, a imagem do bolo faz-se viva naquele ato desgostoso.

Então morro e renasço mais uma vez. Me transformo em um único ser. Não me pergunto quanto tempo aquilo tudo vai durar, vivo pelo tempo. Pouco importa agora o frio. Pouco importa agora o bolo. Pouco importa agora o bolo. Pouco importa agora o bolo.




"Que lindos olhos
Que lindos olhos que você tem
Que ainda hoje
Que ainda hoje eu reparei
Se eu reparasse
Se eu reparasse a mais tempo
Eu não amava
Eu não amava quem amei."







(e fica a cantiga, até que se faça novamente o amanhã)

(seria pudim no lugar do chocolate, como fui bem lembrada, se não fosse demasiado estranho ter um pudim em mãos)

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

O espetáculo do meu constrangimento

Queria escrever como Kundera mas percebo sua frieza e sem querer não consigo mais. Escrevo jorrando as palavras com ternura, buscando o que não conheço de mim. Antes eu fizesse apenas parte da literatura ou deixasse de me identificar com uma de suas personagens que amam sem amor, que controlam paixões e que se vandalizam para ter o que sentir. Mas vivo. E visto com paciência a máscara que criei, fingindo que suas palavras não me fazem querer ficar assim estática-apática para todo o sempre. No outro dia havia uma cortina tão bonita que nos protegia do sol e em meus braços um travesseiro que com ondas me pedia para continuar sempre a espera, respirando ofegante todas aquelas explosões internas que dizem tudo sem dizer nada. Eu escutei em silêncio e pedi: por favor não diga isso hoje! E no meu estado estático-apático eu sentia que meu corpo não era mais meu e pensava: então faça o que quiser comigo. Depois morri e quando acordei novamente estava só em casa escutando velhas canções que hoje não me fazem mais chorar. Já é tarde, tão tarde e, mesmo sabendo que só há o final, me recordo daquelas palavras: Eu aguentei por amor. E eu te disse: Agora você entende o que eu sinto. Os passáros ao nosso lado também sentiam, eu sabia disso, e as árvores e aquele meio dia cheio de cumplicidade. Mas depois vieram as cortinas e o travesseiro e a dor. E quando escuto sobre finais digo: não importa, hoje só quero me sujar de tinta vermelha e dançar nua no meio da rua. Quero escalar montanhas e soltar balões e pintar gatos brancos de cor de rosa. Eu quero cuspir no chão até que me cuspa inteira e deixe de existir me sendo. Por amor.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Um dia já fui inteira feita de palavras e lágrimas. Agora não choro mais que não seja de felicidade e não escrevo mais que não seja por compaixão pelas palavras que habitam em mim. Elas me contam sobre saudade, e eu digo a elas que saudade é esperar que a farinha se refaça em grão, como um dia já te disse que Mia Couto me contou. Outro dia me contaram sobre as tardes em que colhia rosas recordações com cheiro de mel e guardava momentos em folhas perdidas. Sobre as noites que Camões surgia, nu, e as mãos tinham medo. Achei bonito pois me disseram assim: naquelas noites, lutávamos para manter estável o que já nascera destruído. Acredito que tenham razão. Agora elas não voltam com muita frequencia, se transformam em nuvens e me tiram o peso de pensar. Assim está tudo bem. Digo e repito repito repito. Está bem porque aprendi a fingir sorrisos, a contar mentiras e a esconder de mim mesma aquilo que eu gostava de chamar de amor. Eu perdi uma parte inteira de mim e foi quase tão fácil quanto acreditar em fadas.

terça-feira, 21 de junho de 2011

Sobre um final

O tempo acabou. O sol é tristeza e a tristeza é salgada. O existente inexiste. O que há já não há mais. Foi-se tudo o que um dia era. Acabou-se no descompasso do ciclo antes desrritmado. Me tingem de azul, é a cor que resta. E o que não foi acertado jamais se acertará.

Você acreditava no mais tempo e, eu, que havia vida. O que há agora além de observar em silêncio? Um pote vazio, transparente, inexato, morto.

Mas sigo sem saber, tenho de seguir. Deixar que as nuvens continuem a ser nuvens. Tenho de seguir.

Não sei mais se sei respirar. Os carros passam, os deixo passar. E existe um homem, ele tem barba e toca violino na janela. Há um outro que também tem barba e deita na grama. Eles não se conhecem. Eu não os conheço. Existir e deixar de existir. Passar do sol para sombra e da sombra para o sol arrastando a bunda nas pedras e estragando as calças.

Acabou-se pronto fim. O que há de se fazer além de observar em silêncio? A vida não vai de ser vida. O tempo não acabou. Eu quero acabar mas também não acabei. Que seja, assim, onda.